A desnaturalização da violência sexual contra mulheres: entrevista com Nathália Romeiro
O mundo nunca esteve tão voltado para as discussões sobre direitos da mulher, violência sexual contra mulheres e feminicídio. O assunto passou a ser pauta especialmente durante a pandemia da COVID-19, uma vez que o regime de isolamento social causado pela doença evidenciou ainda mais as vidas de mulheres que vivem em situação de violência. Nas redes sociais, por exemplo, houve um aumento de 431% nos relatos envolvendo brigas de vizinhos no Twitter, sendo que havia cerca de 52 mil menções com indicativos de brigas entre casais entre os meses de fevereiro e abril de 2020, conforme relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Tendo como ponto de partida toda essa complexa realidade, com foco na desnaturalização da violência sexual contra mulheres a partir do estudo da folksonomia [entenda sobre o assunto na entrevista] das hashtags #primeiroassédio e #mexeucomumamexeucomtodas na mídia social Facebook, a estudante Nathália Lima Romeiro escreveu a dissertação “Vamos fazer um escândalo: a trajetória da desnaturalização da violência contra a mulher e a folksonomia como ativismo em oposição à violência sexual no Brasil”.
A dissertação, orientada pelo professor Arthur Coelho Bezerra, foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), desenvolvido por meio de convênio entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). O referencial teórico do trabalho de Nathália Romeiro foi baseado nos estudos de gênero especialmente relacionados à violência sexual contra mulheres e em instrumentos normativos que criminalizaram a violência contra mulher desde o período colonial até 2018.
Nathália Romeiro é licenciada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em Ciência da Informação pelo PPGCI/Ibict/UFRJ e doutoranda em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A estudante e pesquisadora fez parte das equipes organizadoras dos livros “O Protagonismo da Mulher na Biblioteconomia e Ciência da Informação” (2018), “O Protagonismo da Mulher na Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação” (2019), e “Do invisível ao visível: saberes e fazeres das questões LGBTQIA+ na Ciência da Informação?” (2019).
Em entrevista para o site do Ibict, Nathália Romeiro conta sobre o estudo realizado durante a dissertação de mestrado. Confira!
Ibict: Como surgiu a ideia do seu estudo?
Nathália Romeiro: Entrei no PPGCI/Ibict/UFRJ para trabalhar um assunto completamente diferente. Propus desenvolver um estudo sobre competência em informação em uma determinada comunidade. Paralelo a isso, sentia cotidianamente a necessidade de dar mais atenção aos estudos de gênero, principalmente por ser uma mulher e também porque percebi que haviam poucos estudos de gênero na área. Tenho o costume de respeitar o tempo das coisas e decidi seguir estudando a Ciência da Informação com um olhar atento às questões de gênero e assim cheguei ao movimento social digital chamado #mexeucomumamexeucomtodas.
A partir disso, o meu olhar não só sobre estudos de gênero, mas também sobre mídias sociais e organização do conhecimento convergiram e passei a me interessar pelo estudo de como as mídias sociais e o uso das hashtags podem ser importantes ferramentas para pautas consideradas tabu, como a violência sexual contra meninas e mulheres. Foi um processo de sensibilização bastante difícil, haja vista o conteúdo das narrativas de violência reportadas e indexadas a partir das hashtags. Ainda assim, como cidadã e pesquisadora, achei fundamental não ignorar o interesse sobre o tema e desenvolver esse estudo na Ciência da Informação.
Ibict: Poderia explicar sobre folksonomia das hashtags nas mídias sociais?
Nathália Romeiro: A folksonomia é um campo de estudo da organização do conhecimento popularmente conhecido como “classificação do povo”. Representa a autonomia de interagentes digitais sobre determinado assunto, usando uma linguagem naturalmente digital. O uso das hashtags representa um tipo de folksonomia que foi popularizado nas mídias sociais digitais, a princípio no Twitter e depois também em outras mídias, como o Facebook e o Instagram, por exemplo. É necessário evidenciar que as hashtags são utilizadas atualmente para movimentar discussões políticas e econômicas diversas, e que o ativismo digital não obedece a um código moral específico, ou seja, elas podem ser utilizadas para diversos fins, inclusive para promover discursos de ódio.
No caso da minha pesquisa, observei como esse fenômeno foi utilizado para a promoção do debate sobre violência contra meninas e mulheres, como o uso das hashtags contribuíram para o rompimento do pacto do silêncio e a formação de redes de apoio a vítimas de violência no Facebook. É possível dizer que a maioria das pessoas que utiliza essas mídias teve contato com este tipo de indexação e, provavelmente, a maioria das pessoas que compartilha conteúdos nas redes utilizou ou consumiu informações nos quais esse tipo de linguagem esteve presente.
Ibict: Como as redes sociais estão transformando a violência contra a mulher?
Nathália Romeiro: As mídias sociais, apesar de aumentarem a visibilidade do enfrentamento à violência contra mulheres, não atuam de fato na solução dos casos, tampouco na punição criminal dos algozes. Entretanto, o ativismo nas mídias digitais possibilita discussão sobre a temática e isso impacta não só na popularização do assunto, como também contribui para reflexão sobre a cultura do estupro e para a formação de redes de apoio entre pessoas vítimas de violência e aliados(as).
Em termos históricos, esse tipo de ativismo iniciou em 2015, ano que ficou popularmente conhecido como o ano do empoderamento da mulher nas mídias sociais. O uso dessas mídias como espaços de ativismo para pautas das mulheres popularizou-se a partir da cerimônia do Oscar de 2015. Nesse evento, diversas participantes utilizaram a hashtag #AskHerMore [pergunte mais a ela] para combater estereótipos de gênero e misoginia por parte de jornalistas que perguntavam mais sobre a vestimenta de mulheres do que sobre seus trabalhos.
No Brasil, o uso de hashtags em oposição à violência contra mulheres também começou em 2015 e continua até os dias atuais. A primeira hashtag a se popularizar no país foi a #primeiroassédio, incentivada também no Twitter pela ONG “Think Olga”, ao denunciar o assédio de homens adultos em relação a uma menina de 12 anos participante do programa de culinária “Masterchef Junior”. A partir desta denúncia, diversas mulheres e homens compartilharam seus primeiros assédios sofridos, deixando a temática da naturalização do assédio em voga no Twitter e Facebook em evidência até 2018. A partir da #primeiroassédio emergiram outras campanhas, não só no Brasil, mas também em outros países.
Ibict: Em tempos de pandemia de COVID-19, temos visto que as estatísticas de violência contra a mulher aumentaram. Tendo seus estudos como base, como as redes sociais podem atuar na prevenção da violência contra a mulher?
Nathália Romeiro: No contexto de pandemia, no qual é recomendado o isolamento espacial, o engajamento na internet ganha outras proporções. Sobretudo para popularização do assunto e compartilhamento de informações em relação à violência contra mulheres. Tenho acompanhado que, para além do desabafo, esses espaços têm sido importantes para promover o diálogo e a conscientização não só sobre a violência contra mulher, mas também em relação à cultura do estupro, ao consumo de pornografia e à performance de masculinidade tóxica, que são temáticas importantes para pensarmos em estratégias cidadãs para o enfrentamento à violência contra mulheres.
Em relação ao aumento de casos, é necessário considerar dois aspectos: o primeiro é que nem sempre a quantidade de denúncias reflete a quantidade de casos de violência vivenciados. Muitas pessoas ainda não denunciam seus algozes por medo do agressor ou por não acreditarem que o agressor será punido judicialmente. O segundo é que a solução para o problema por vezes não virá rapidamente, haja vista que o patriarcado ainda é um sistema hegemônico na cultura ocidental. Acredito que o engajamento, os movimentos sociais e a construção de debates coletivos acerca da temática sejam alguns dos caminhos para o enfrentamento à violência.
Cabe destacar a urgência para que esse problema seja discutido também na política e que sejam realizadas ações institucionais para conscientização da população e enfrentamento à violência tanto no âmbito jurídico, como uma questão de saúde pública e assistência social. Ficou comum, nesse contexto, que as pessoas utilizassem as mídias para promoção de debates por meio de lives e outros eventos na Web. É interessante observar como diversas pessoas, de dentro e fora do ambiente acadêmico, optaram por discutir temáticas que antes eram consideradas tabus tão abertamente nos seus espaços virtuais.
Acredito que, para além das denúncias, relatos e formação de redes de apoio, o engajamento em oposição à violência contra mulher contribui para que outros temas sejam discutidos, como, por exemplo, masculinidade tóxica, relacionamentos abusivos, entre outros. Esse movimento, portanto, representa uma oportunidade de aprendizado coletivo protagonizado por qualquer pessoa que se propõe a discutir e compartilhar seus conhecimentos com a sua rede de contatos.
Ibict: Como fazer da Ciência da Informação uma ciência cada vez mais preocupada com temáticas importantes para a humanidade, como a violência contra a mulher?
Nathália Romeiro: Atualmente, é possível dizer que a temática vem ganhando fôlego nos eventos acadêmicos, especialmente no ENANCIB [Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação], principal evento de Ciência da Informação do país. Além disso, outras iniciativas vêm sendo realizadas, como as atividades do Grupo de Estudos e Pesquisas em Mediação da Informação e Marcadores Sociais da Diferença (GEMINAS), coordenado pelas professoras Gisele da Rocha Côrtes e Gracy Martins, da Universidade Federal da Paraíba, por exemplo.
Acredito que cada vez mais pesquisadoras e pesquisadores da área vão se interessar pela temática. Penso que por meio da divulgação científica em diferentes canais de comunicação, bem como a criação de eventos e disciplinas que discutam questões de gênero e sexualidade na ciência da informação sejam importantes, não só para a sensibilização de discentes e pesquisadores sobre o assunto, mas também para a popularização do tema na área.
É necessário que a comunidade científica se dedique a realizar a divulgação dos saberes produzidos para além do ambiente acadêmico, adequando a linguagem para que diferentes públicos possam acessá-la.
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A dissertação de Nathália Romeiro está disponível integralmente no Repositório Institucional do Ibict, em: https://ridi.ibict.br/handle/123456789/1074.
Patrícia Osandón
Núcleo de Comunicação Social do Ibict
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