Como vamos lembrar da pandemia de Covid-19 no futuro? A crise do novo coronavírus trouxe medidas de isolamento social e o fechamento temporário de arquivos e instituições de memória. No entanto, processos digitais ganharam destaque nas instituições e surgiram diversos projetos para o registro das experiências relacionadas à primeira grande pandemia do século 21.
Na entrevista ao site do Ibict, Miguel Arellano, coordenador da Rede Cariniana do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), reflete sobre os efeitos da pandemia no setor e a importância do registro desse momento com iniciativas de memória social e preservação digital, além das perspectivas para o futuro pós-crise.
Antropólogo pelo Instituto Nacional de Antropologia e História (México), Miguel é mestre e doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Brasília. Desde 1997 trabalha como tecnologista do Ibict, onde coordena a Rede Brasileira de Preservação Digital Serviços Cariniana. Também é editor do repositório internacional E-LIS e membro do Standing Committee of Preservation and Conservation da IFLA.
O que é preservação da memória social e qual é a sua importância?
Miguel Arellano - A memória social tem sido definida como o “conjunto de lembranças reconhecidas por um determinado grupo”. Ela é a herança que recebemos dos nossos antepassados, que deve ser organizada e preservada para ser acessível no futuro. Cabe aos bibliotecários e arquivistas colaborar com outros cientistas sociais na preservação e na democratização do acesso à memória social, nas suas manifestações analógicas ou digitais. Na tarefa de construir registros documentais os profissionais da informação adicionam propriedades que possibilitam a sua reconstrução no futuro, armazenados no seu próprio local de memória. A gestão da informação de caráter patrimonial envolve a necessidade de entender a natureza desses registros e de todo seu ciclo de vida e seu uso social presente e futuro.
No caso da memória digital, podemos dizer que chegamos a uma memória ilimitada. Os suportes dessa memória dependem do avanço tecnológico e da manutenção permanente de plataformas digitais, onde os documentos memoriais e informacionais ficam organizados e armazenados. Alguns atributos desses registros condicionam a sua longevidade, tais como a descrição dos conteúdos (metadados de preservação), a integração entre sistemas digitais, o uso de formatos preserváveis e a observância de padrões internacionais. A guarda natural da memória social é superada na aplicação de metodologias de preservação digital e é um compromisso dos profissionais da informação.
Como você enxerga esse momento da história que estamos vivendo e a necessidade de seu registro?
Miguel Arellano - Eu acredito que todos os países estão tendo uma oportunidade de fortalecer seus patrimônios documentais. O registro de todas as ações que estão sendo realizadas permitirá às gerações futuras entender o impacto da pandemia nas sociedades. Os profissionais da informação estão cooperando no arquivamento de todos os registros oficiais e pessoais relacionados com a pandemia, criando estoques de informação e recursos de gerenciamento que servirão para uma contextualização mais completa da realidade que vivemos hoje.
Também é o momento de ampliar a conexão e a cooperação entre instituições para a preservação da memória digital, aumentar os recursos financeiros e a gestão das coleções digitais e dos seus riscos. Os arquivos e as bibliotecas estão frente a uma oportunidade única de disseminar a sua imagem de instituições responsáveis pela custódia de informações confiáveis e de qualidade, planejando suas ações de curadoria da documentação sobre o Covid-19 para permitir uma representação da doença mais completa no futuro.
Existe algum exemplo de preservação da memória de pandemias do passado, por exemplo, a gripe espanhola?
Miguel Arellano - Pandemias são momentos extraordinários da história e nos últimos três séculos os registros que temos são aquele produzidos por historiadores e arquivistas disponibilizados em bibliotecas e museus do mundo - são eles que fornecem uma perspectiva histórica a longo prazo. São histórias que documentam a doença e a perturbação e a resiliência da população.
Até o século passado as pessoas contavam suas histórias em jornais e livros. Temos o caso do escritor Daniel Defoe, que escreveu Um diário do Ano da Peste. Ele narra a peste bubônica em Londres de 1665 baseado nos relatos que ele ouviu de um antepassado que sobreviveu à epidemia. Também temos no repositório da Wright State University o registro do diário escrito por Donald McKinney Wallace, um fazendeiro que serviu no exército americano e que sobreviveu à epidemia da gripe de 1918. Ele ficou em quarentena em quartéis e escreveu sobre as instalações, as refeições e a morte de outros soldados.
Como os arquivos e instituições de memória foram impactados pela pandemia no Brasil e no mundo?
Miguel Arellano - No momento em que grandes instituições de memória decidiram fechar suas portas em março de 2020, atividades básicas de tratamento bibliográfico e documental passaram para um nível mais lento nas atividades de tratamento dos materiais físicos e digitais. A necessidade de esterilização de objetos analógicos aumentou, assim como o atendimento referencial em linha.
Uma preocupação que surgiu desde o início foi o registro das expressões artísticas e criativas das comunidades que fazem parte do patrimônio documental digital. Programas como o da Memória do Mundo da UNESCO, apoiam a preservação e acesso ao registro oficial relacionado ao Covid-19 em todos os Estados Membros. Também as recomendações da IFLA para todas as associações participante têm relação com o reconhecimento desse patrimônio emergente como fonte de conectividade social e de resiliência da população.
Muitas das instituições de memória não possuíam planos de contingência de riscos relacionados a pandemias e passaram por um período de incerteza frente às novas formas de atendimento às demandas atuais por informações confiáveis. Grandes associações de bibliotecários e arquivistas começaram a divulgar suas recomendações para o trabalho remoto e suas agendas de treinamentos à distância. Por exemplo: não é recomendado o uso de alvejantes para desinfetar espaços de coleções em papel.
Uma boa atitude é a realização de pesquisas por parte de bibliotecas, arquivos e museus que estão procurando encontrar formas de reabrir suas portas com segurança. Para as instituições arquivísticas, a associação americana NARA criou uma série de recomendações para a gestão e avaliação dos arquivos.
Alguns projetos de preservação da memória surgiram durante a pandemia para documentar a experiência das pessoas nessa crise de saúde mundial. Você pode citar alguns projetos, exemplos ou iniciativas que te chamaram a atenção?
Miguel Arellano - Neste período de pandemia, várias universidades, arquivos e sociedades históricas e até estações de rádio estão coletando e fazendo curadoria de relatos de como as pessoas estão enfrentando essa crise de saúde pública. Fazem isso por meio de cartas e jornais, histórias orais em áudio e vídeo e nas mídias sociais. É como se fosse uma construção de uma história comunitária que possa oferecer uma visão completa do surto e que pode ajudar as pessoas a entender melhor como a pandemia permeou nossas atividades cotidianas.
Nos Estados Unidos existem vários exemplos disso. É o caso da Wright State University que criou o projeto de memória pública deste coronavírus, com notícias de jornais e posts em redes sociais. Também uma equipe de historiadores e artistas iniciaram o projeto A Journal of the Plague Year: An Archive of Covid-19, inspirado no romance de Daniel Defoe, com mais de 500 colaboradores em todo o mundo.
Nessa linha, a Biblioteca do Congresso Americano está coletando conteúdo web sobre o assunto e organizando coleções de fotografias, mapas, dados e entrevistas. Uma estação de rádio na Pensilvânia montou uma série chamada de Diários de Coronavírus onde os ouvintes compartilham suas experiências usando um aplicativo de mensagens de voz transmitidas a cada hora. Os arquivos locais americanos também adotaram a coleta de materiais digitais e artefatos físicos que trazem a história de como a vida cotidiana mudou. Um exemplo é o projeto Corona Collective. Outro exemplo em universidades é o da Universidade de Indiana, onde um pesquisador de história pública digital montou um banco de dados pesquisável com registros de experiências de pessoas com o coronavírus.
Durante a pandemia, processos virtuais ganharam destaque. Que desafios e práticas você observou sobre métodos de preservação de memória nesse período?
Miguel Arellano - O volume de informação que recebemos envolvendo a pandemia é enorme e vem de diferentes canais. No caso das fontes de informação oficiais de governo e instituições de ensino e pesquisa, o desafio é como arquivar e preservar os produtos dessas fontes de naturezas diversas. Para os arquivistas e bibliotecários, o papel de curadores de materiais digitais inclui os o estudo sobre os usuários futuros dessas informações e aqueles que irão estudar todos os aspectos sociais, econômicos, culturais e patrimoniais que envolvem a pandemia em todos os países. As abordagens vão de individuais a institucionais, em um arquivamento que cobre as reações de pessoas e grupos sociais.
Uma iniciativa de preservação que se destaca atualmente é a do International Internet Preservation Consortium (IIPC) e da Internet Archives direcionada à coleta e preservação do conteúdo divulgado na Web.Nesse esforço é usada a ferramenta de preservação Archive-It que permite adicionar, importar e exportar metadados descritivos e recuperação de conteúdos, além do seu empacotamento para facilitar a integração com repositórios e serviços de preservação de longo prazo. Essa é a mesma ferramenta usada pela National Library of Medicine e pela UK Archive’s Pandemic Outbreaks que adicionou recentemente o Covid-19 nos seus recursos sobre surtos de vírus, com o objetivo de preservar uma coleção seletiva de sites com diversas perspectivas sobre a doença .
Mas talvez o maior desafio a ser enfrentado na área da preservação do patrimônio digital deste período é o de documentar todos os materiais que estão sendo produzidos fora das instituições acadêmicas e governamentais e que ainda não estão incluídas nos repositórios digitais. Eles são produzidos pelas comunidades e ajudam a moldar suas memórias coletivas excluídas das narrativas oficiais.O papel das bibliotecas e arquivos como instituições de memória é o de motivar a participação de suas comunidades de usuários e usar essas fontes na construção de sua história coletiva.
Também, existe a falta de acesso a financiamento institucional para projetos de preservação digital de conteúdos dessa natureza, que poderiam estar direcionados a cobrir todo o ciclo de vida da preservação digital que vai de uma coleta seletiva desses materiais até seu armazenamento seguro em repositórios confiáveis.
Quais são as perspectivas de preservação digital para o futuro pós-pandemia?
Miguel Arellano - O que se espera é que possamos ter como sociedade um registro mais completo de um período histórico, do que aqueles que temos das pandemias dos últimos séculos. Alguns especialistas mencionam que as crises globais de saúde são também crises de informação. No caso presente, deveria existir um esforço coordenado de curadoria e arquivamento dos materiais relacionados a ela. Estamos ainda na fase de produção e coleta de informações e o papel das bibliotecas e arquivos no esforço de preservar será fundamental, se essas instituições de memória seguirem modelos de compartilhamento de fontes e recursos de informação.
Mesmo com seus prédios fechados, a sociedade espera contar com os profissionais da informação para organizar seus testemunhos garantindo a longevidade deles como evidências essenciais de um período. Na área da preservação digital, o arquivamento da web está surgindo cada vez mais como um ponto de confluência funcional entre bibliotecas e arquivos. Assim como a implementação dos novos repositórios de dados de pesquisa que também entram agora na fase de avaliação e seleção de dados autênticos, os quais estão sob riscos de se perderem pela quantidade de informações sobre a Covid-19 que precisam da aplicação de planos de preservação digital documentados. A forma como esses registros estarão organizados será determinante sobre como a posteridade conhecerá a primeira grande pandemia do século 21.
Carolina Cunha
Núcleo de Comunicação Social do Ibict
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